Com a temporada de premiações se aproximando, o burburinho em torno de potenciais indicados começa a ganhar força. Um dos filmes que já desperta grande atenção é Morra, Amor (2025), dirigido pela aclamada cineasta Lynne Ramsay. Desde sua estreia mundial no Festival de Cannes 2025, a atuação visceral de Jennifer Lawrence, já laureada com um Oscar, tem sido amplamente elogiada.
Os aplausos à performance de Lawrence são merecidos, mas é crucial reconhecer que tal feito se deve à entrega da atriz a um roteiro complexo e desafiador, habilmente conduzido pela visão de Ramsay.
Morra, Amor é um drama psicológico que se debruça sobre a história de Grace, interpretada por Lawrence. Baseado no romance homônimo de Ariana Harwicz, o filme acompanha uma jovem mãe vivendo na zona rural de Montana, que enfrenta uma severa depressão pós-parto e surtos psicóticos. Esses transtornos começam a minar seu casamento com Jackson (Robert Pattinson) e a abalar sua própria sanidade.
Uma leitura superficial da sinopse pode não capturar a profundidade das emoções e ideias exploradas por Ramsay. A diretora constrói uma narrativa que evoca uma releitura do Jardim do Éden, com Pattinson e Lawrence em papéis que remetem a Adão e Eva.
Essa abordagem pode soar familiar para quem se recorda de Mãe! (2017), de Darren Aronofsky. Naquele terror psicológico, Aronofsky buscou retratar a jornada bíblica do Gênesis ao Apocalipse, com uma protagonista feminina imersa em um cenário doméstico e religioso. No entanto, a tentativa de Aronofsky de explorar as diferenças entre o masculino e o feminino foi criticada por alguns como uma expressão de ego autoral, em vez de uma meditação profunda sobre a condição humana.
Lynne Ramsay, por outro lado, evita as armadilhas de Mãe!. Ela recria o mito da criação abraâmica utilizando elementos familiares: o Jardim (a paisagem rural de Montana), Adão e Eva (Jackson e Grace), Deus (o pai de Jackson), a serpente (a mãe de Jackson) e o fruto proibido (um misterioso motoqueiro). A genialidade de Ramsay reside em ressignificar esses elementos para desvendar as complexidades da experiência feminina, em suas dimensões horizontal e vertical.
A jornada de Grace, cujo nome evoca a ideia de ‘graça’, torna-se um portal para a exploração da luz e da sombra inerentes à condição feminina. Uma cena inicial emblemática ilustra essa dualidade: Grace se levanta para amamentar seu bebê. Após colocá-lo para dormir, ela se dirige ao seu escritório, onde deveria trabalhar em seu romance, mas encontra uma superfície branca sob a mesa. Ao despejar tinta nanquim (preta), gotas de seu leite materno (branco) caem sobre a mesma superfície, misturando-se. Mais do que uma representação das dificuldades da maternidade e da depressão pós-parto, a cena é uma declaração sensorial do Yin-Yang presente na natureza feminina.
A filosofia taoísta do Yin e Yang descreve a dualidade de todas as coisas no universo, duas forças opostas e complementares. O Yin representa o princípio da noite, da Lua, da passividade e absorção; o Yang, o Sol, o dia, a luz e a atividade. Segundo essa visão, cada ser possui um complemento do qual depende para existir, e nada existe em estado puro, mas em constante transformação. O diagrama do tei-gi simboliza o equilíbrio dessas forças, com o preto (Yin) e o branco (Yang) em um movimento contínuo de geração mútua, refletindo a natureza fluida e mutável da realidade.
Em essência, Lynne Ramsay discorre sobre um princípio humano fundamental: somos seres de luz e sombra, cujas experiências internas e externas se manifestam. A cineasta utiliza Grace e a atuação intensa de Jennifer Lawrence para expressar a eclosão dessas emoções e pensamentos, que levam a protagonista a um estado mais primitivo, imersa na vastidão da natureza de Montana, longe das convenções da vida urbana.
Diferentemente de trabalhos anteriores de Ramsay, como Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011) e Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017), que apresentavam um tom ligeiramente mais esperançoso ao final, Morra, Amor oferece uma experiência mais crua. Contudo, essa aspereza não deve ser interpretada como pessimismo. Pelo contrário, o filme se configura como um ato de enfrentamento, um desafio às noções pré-concebidas sobre o que significa ser mulher. É um mergulho no ‘calor do inferno’ em seu estado mais natural, pois, ao provar do ‘fruto proibido’, a personagem torna-se plenamente consciente da luz e da sombra que transitam continuamente em seu ser feminino.