As dinâmicas tensas de programas de confinamento, como o popular reality ‘A Fazenda’, frequentemente transcendem as telas e podem resultar em desdobramentos legais. Um exemplo recente é a ação judicial movida por Rayane Figliuzzi, ex-participante da 17ª edição do programa, contra Saory Cardoso. A controvérsia surgiu após Saory ter proferido termos como “golpista” e “estelionatária” contra Rayane durante a exibição do reality.
Este episódio levanta uma questão pertinente: a atribuição pública de crimes por participantes de reality shows pode acarretar responsabilidade jurídica? Segundo a advogada criminalista Suéllen Paulino, a resposta é afirmativa.
A especialista esclarece que, no ordenamento jurídico brasileiro, declarações que atribuem a alguém a prática de crimes ou que atentem contra a sua reputação podem configurar crimes contra a honra, como calúnia, difamação ou injúria. Estes ilícitos estão tipificados nos artigos 138 a 140 do Código Penal. “Isso é válido mesmo quando as manifestações ocorrem em ambientes de ampla exposição pública, como é o caso de reality shows e plataformas de mídia social”, pontua Paulino.
Entendendo os Termos Legais
- Calúnia: Consiste na falsa imputação de um crime a alguém.
- Difamação: Ocorre quando se divulga um fato que, embora não seja crime, prejudica a reputação da pessoa.
- Injúria: Refere-se à ofensa direta à dignidade ou ao decoro de alguém, utilizando xingamentos ou insultos.
O Peso da Exposição Pública
Em conversa com este veículo, a advogada detalhou: “Quando as acusações são proferidas diante de milhões de espectadores, como acontece em um reality show, o potencial dano à reputação se agrava consideravelmente. Essa circunstância tende a influenciar as decisões judiciais”.
Rayane Figliuzzi, vale ressaltar, já é investigada por estelionato desde 2022 e chegou a ser presa, mas atualmente responde ao processo em liberdade. A advogada Suéllen Paulino aborda a dúvida comum sobre se o fato de alguém estar sob investigação ou responder a um processo criminal autoriza terceiros a rotulá-la publicamente como criminosa.
“O simples fato de uma pessoa responder a um inquérito ou processo não confere a terceiros o direito de afirmar publicamente que ela é criminosa, precisamente porque não há condenação transitada em julgado. No Brasil, impera o princípio da presunção de inocência. Assim, mesmo que uma participante esteja sendo investigada ou responda por estelionato, chamá-la publicamente de ‘estelionatária’ sem uma decisão judicial definitiva pode gerar responsabilização por calúnia ou difamação. Da mesma forma, expressões como ‘golpista’, ‘bandida’ ou outras de caráter pejorativo, se proferidas com o intuito de manchar a imagem da pessoa, também podem configurar injúria”, explicou a criminalista.
Critérios Avaliados pela Justiça
- Comprovação da Imputação: A ausência de provas ou de elementos públicos que sustentem a acusação pode configurar calúnia ou difamação.
- Contexto da Declaração: Embora realities sejam ambientes propensos a conflitos, isso não garante imunidade. A Justiça analisa se houve excesso, intenção de ofender ou exposição indevida.
- Alcance da Ofensa: A veiculação em rede nacional e o alto engajamento do público intensificam o dano moral.
- Conduta das Partes: Trocas de ofensas podem ser consideradas, mas não isentam automaticamente quem excede os limites legais.
- Consequências para a Vítima: Prejuízos à imagem, perda de contratos, danos emocionais e repercussão negativa são fatores que compõem um eventual pedido de indenização.
O Posicionamento da Justiça
A advogada Suéllen Paulino reforçou que “a Justiça brasileira tem um entendimento consolidado: o entretenimento não serve como justificativa para a violação da honra. Participantes de reality shows são indivíduos reais, e as respostas judiciais nesses casos se tornam cada vez mais frequentes, tanto na esfera penal (por meio de queixa-crime) quanto na civil (para pleitear indenização por danos morais). Embora a intensa exposição favoreça o surgimento de conflitos, o ambiente televisivo não é um espaço desprovido de lei”, concluiu.
No caso específico envolvendo Rayane Figliuzzi, a advogada comentou que a alegação de ter sido publicamente acusada de estelionato, um crime grave, pode, se a acusação for falsa, impactar significativamente a imagem pública da participante. “A Justiça, nesses cenários, tende a analisar minuciosamente os vídeos e o contexto das declarações, verificando se houve uma imputação categórica de crime, se a acusação possuía algum fundamento ou se tratou meramente de ofensa, além de apurar os danos à imagem e a repercussão pública. Na ausência de respaldo para a acusação, é comum que se conceda indenização por danos morais e, eventualmente, o reconhecimento do crime contra a honra”, observou a criminalista.
A especialista reiterou que as discussões dentro de programas de confinamento, mesmo que percebidas pelo público como mero entretenimento, não estão imunes às consequências jurídicas. “Acusações de crime feitas sem fundamento, mesmo em um contexto de competição, podem levar a condenações civis e criminais. E um ponto crucial: ninguém pode ser rotulado como criminoso sem uma condenação judicial definitiva. Responder a um processo não autoriza ninguém a taxar outra pessoa dessa forma. Reality shows promovem exposição, mas a lei protege os indivíduos, inclusive contra ofensas veiculadas na televisão”, finalizou.